sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Conto: Papos no ponto de ônibus*

Cansada depois de uma madrugada toda de trabalho e completando 44 horas sem dormir a garota estava parada no ponto de ônibus esperando o famoso 2113 (esse é o único ônibus que vai do trabalho dela até a zona sul onde mora) e como de costume ele parecia demorar uma eternidade para chegar. Naquele momento a único coisa que ela pensava era na sua cama quentinha a esperando em casa, não teria mais de trabalhar naquele dia e poderia dormir até 24h seguidas se fosse necessário. Sem saco ou cabeça para pensar em qualquer outra coisa a garota implorava para que o ônibus não demorasse, foi nesse momento que foi abordada por duas mulheres.
As duas tinham um visual meio esquisito, cabelos quase até a cintura, saias compridas (estilo "maria mijona"). Quando as viu a garota logo pensou "são crentes". Não deu outra, poucos segundos depois umas das mulheres esticava um papelzinho para garota e perguntava "posso lhe entregar uma palavra da bíblia?". A atitude mais acertada seria aceitar o papelzinho, as duas iriam embora satifeitas e fim de história, mas sem saber direito o pq a garota foi curta e grossa: "não!". A crente se assustou com a atitude ríspida e a questionou: "pq?", "pq não acredito", respondeu a garota. "Não acredita em que? Em Deus? Na Bíblia?". Foi nesse momento que a mente da garota viajou.
Excelente pergunta, pensou. Em que exatamente não acreditava? Criada por pais que acreditam em absolutamente tudo, para ela era meio estranho não acreditar em algo. Por acreditar em tudo os pais nunca batizaram de nenhum dos 3 filhos, deixaram que eles escolhessem o caminho que queriam seguir. Os 2 mais velhos viraram ateus, a garota nem tanto. Matriculada em um colégio de freira, ela cresceu tenhos 2 aulas de religião por semana e tendo que ir a capela quase que todos os dias e a unica coisa que ela lembra das aulas de francês (idioma ensinado na escola no lugar do habitual ingles) era a Ave Maria. Certo dia a garota percebeu que todas as suas amiguinhas se preparavam para a Primeira Comunhão que seria realizada na escola e como não queria ficar de fora pediu para que os pais a batizassem para que assim pudesse participar do ritual religioso.Com o tempo as aulas de religião acabaram e a fé um pouco tb, se tornou uma garota mais prática e acreditar que um ser superiou criou o mundo em 7 dias passou a ser um pouco fantasioso. Sua participação em rituais religiosos passou a ser praticamente nula, com excessão de casamentos, batizados e missas de sétimo dia, mas sempre que podia, evitava esse tipo de ocasião. E claro, passou a acreditar muito mais em esforço do que em milagre. Teve de ralar muito para conquistar suas coisas para acreditar que "Deus" tinha colocado aquilo tdo no seu caminho.
Depois de pensar em tdo isso veio a resposta "acho que acredito apenas em mim, no meu esforço", a crente não gostou muito da resposta, ficou branca e se preparou para rebater, mas algo a impediu, ela respirou fundo e puxou outro papelzinho "posso te entregar uma palavra da família, na família vc acredita não?!?", dessa vez achou melhor não rebater e aceitou, mas claro, depois de ler as primeiras palavras que afirmavam que "Deus era responsável pelas famílias perfeitas, que para se ter uma família perfeira precisamos seguir os ensinamentos divinos e claro, o conceito da família perfeita: papai trabalhador e fiel, mamãe dona de casa e vivendo para o marido e filhos e os filhos, filhos perfeitinhos, que vão a Igreja todos os dias, nunca brigam e todos vivem em harmonia", enquanto lia aquela baboseira toda a outra crente, até então calada, começou a discursar sobre o tal conceito de família. A garota se irritou, amassou o papel e exclamou "nessa família, desculpe, não acredito", "como assim?", exclamou a crente.
A garota até pensou em dar o seguinte discurso: "meus pais se separaram quando ainda não havia completado nenhum ano de vida, minha mãe se casou de volta e logo se separou novamente. Meu pai teve algumas namoradas, algumas que duraram algum tempo, mas sem virar em casamento e hoje os dois estão solteiros. Meus irmãos e eu nunca fomos os filhos perfeitinhos, erramos muito, pisamos na bola, brigamos muito, assim, como todos os irmãos, como todos os filhos. Hoje meu irmão do meio vive com a namorada sem estar oficialmente casado ou menos ainda casado no religioso e nem pretendem, nem filhos pretendem ter e nem por isso deixam de ser felizes. Avós, tios, primos etc... estão longe de serem perfeitos e a família vive tendo que contornar problemas, normal, coisas que acontecem "nas melhores famílias". Ou seja, estamos longe de ser "perfeitos", mas não deixamos de ser uma família e não deixamos de ser felizes do nosso jeito.
Sim, a garota podia ter dito tudo isso e deixar as crentes ainda mais horrorizadas, mas não disse nada! Pq? Pq o ônibus se aproximava e só oq ela precisava era dormir. Ignorou a pergunta da crente e subiu no ônibus, quando subia ouviu a mais velha das duas gritar "você vai acabar no inferno desse jeito". Quando sentou no banco do ônibus a garota dormiu e sonhou, não com os anjos muito menos com Deus e com o inferno, mas com a sua família.


*Baseado em fatos reais